domingo, abril 23, 2006

HISTÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA

História duma boneca de papelão
conto de Salomé de Almeida
quadro de Henri Rosseau

Porque a teriam feito assim tão feia e deselegante, porquê?
Era o pensamento constante dessa boneca que para ali estava sentada a um canto da sala, ruminando não sei que pensamentos de inveja no seu cérebro chato de papelão.
Seus olhos tortos miravam aquela boneca chegada há pouco de Paris, tão linda, tão elegante e sempre tão bem vestida, reclinando-se contente num maple de estofo verde.
Com que satisfação rasgaria a cara daquela tôla que se sorria num sorriso idiota de boneca feliz.
Tinha-lhe raiva, odiava-a e toda a sua alegria seria poder fazer-lhe mal, fazer-lhe sentir quanta inveja lhe causava por ser bonita, querida e amimada. Mas como? Como vingar-se da má-vontade dos homens que a tinham feito desajeitada e feia?
E em seu cérebro chato de papelão os planos sucediam-se:
Chamar a si o Tareco, um gato francês de olhos de esmeralda, para que ele espatifasse a boneca? Não porque esse era o "ai Jesus" da menina e iria contar-lhe tudo.
Talvez o Piloto se lhe associasse nesta campanha contra a beleza. Se ele era um cão feio, triste e tão desprezado!
Nisto, uns passos subtis de quem caminha devagar, vieram arrancar Mona (assim a tratavam lá em casa) às suas divagações de maldade.
Era o Pilôto, um cão feio, de dorso quase sem pêlo mas de olhar amigo, onde não havia sombras de inveja ou pensamentos maus.
Mona chamou-o e falsa, dissimulada, começou por lhe perguntar pela saúde, se ia melhor dos seus achaques, se já lhe tinham dado de comer...
E quando Pilôto, em sua voz serena, lhe disse que a criada se esquecera dele, por ter muito que fazer, Mona, pondo todo o veneno da sua índole preversa, nas palavras, foi-lhe dizendo que ninguém esquecia o Tareco, que àquelas horas estaria bem farto de petiscos, a dormir nas fôfas almofadas do salão; ao passo que ele - um cão tão digno de atenções e cuidados - para ali andava esquecido, desprezado!
Ah! ela bem sabia o que isso era! Sabia-o por experiência própria. Havia já três dias que ninguém se importava com ela. Tinham-na pôsto escostada à ombreira da porta, em pé como um soldado, e tão fraca se sentira, que as pernas vergaram e para ali ficara caída, abandonada! O vestido era sempre o mesmo, uns restos do avental da cozinheira. - Mas veja, amigo Pilôto, se alguém se esquece daquela serigaita tôda vestida de seda! Ainda há pouco aí esteve a menina a vesti-la, a penteá-la, a beijá-la e, depois de a ter tirado do seu berço, um mimo de rendas e bretanhas, com que carinhos a sentara naquele "maple" verde!
Não Assim não podia ser! Se soubesse quanto tenho pensado! E tudo dependia de si!
Baixinho, a voz cada vez mais meiga e untuosa, Mona traçava o seu plano:
- Bastava o senhor Pilôto saltar sôbre essa empertigada e espatifá-la. Ninguém suspeitaria de si, pois todos sabem como é sensato e obediente. Pensariam, sim, que fora o Tareco porque é turbulento, bulicioso e mau e seria ele o castigado.
Pilôto que até então estivera caldo, olhou everamente Mona que, envergnhada, desviou o seu olhar oblíquo. Os olhos leais do cão traíam toda a indignação da sua alma simples e, com flexões na voz, de severidade e espanto, foi dizendo a essa boneca de papelão que o escutava tremendo, quanto ela adora lhe parecia feia depois de se revelar tão má e desapiedada.
Como achava horrível o seu rosto encarniçado, os seus olhos tortos, a sua boca contraída, onde se lia tôda a história da sua índole preversa!
Antes de saber quem ela era, gostava de vir acompanhá-la e um sentimento terno de amizade o levava a procurar a sua convivência.
E quantas vezes, ouvindo que desdenhavam dela por sua fealdade, se indiganva, porque aos seus olhos, Mona era uma boneca gentil na sua humildade de boneca de papelão.
Que pena lhe causava vê-la sssim tão má!
E Pilôto triste, maguado, ia afastar-se vagarosamente como viera, quando um soluço mal sufocado o fez parar e olhar para trás. Era Mona que entre lágrimas lhe pedia para não a deixar só.
- Nunca ninguém me tinha falado como o Pilôto e porque me via desprezada e sem coração amigo que se apiedasse de aminha desdita, a solidão fez-me má; mas agora vejo que se pode ser feliz mesmo quando se é feio; o que devemos é ser simples e bons e nunca deixarmos crescer dentro de nós essa planta pior que todas as plantas daninhas - a inveja. O Pilôto tem muita razão. É tão simples ser-se feliz! E a voz de Mona agora era mais serena e o seu rosto mais bonito, iluminado pela centelha de bondade que a tudo empresta uma beleza nova.

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

As bonecas de papelão eram sempre bonitas, não havia outras antigamente...
Lembro-me do "Luizinho" um boneco, também de papelão, que mais a minha irmã decidimos "baptizá-lo" e fazer a respectiva festa....
Uma outra ocasião, foi a vez de ele ir ao banho...
Era escusado dizer... mas ele desfez-se todo...
Foi parar ao telhado, em forma de "bola de papelão" !.......

2:07 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Belíssimo conto de uma “patinha feia” mas com um final feliz.
Já agora, falando em beleza, reparo que a Luísa já era em criança bem bonita.

11:33 da tarde  

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